segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Apropriação indébita previdenciária (art. 168-A, § 1º, inciso I do CP)

Mais outra do Lucky

A conduta típica, no caso, é omissiva, consistindo em "deixar de recolher, na época própria, contribuição ou outra importância devida à Seguridade Social e arrecadada dos segurados ou do público". Ao contrário dos tipos ativos, nos quais a conduta descrita é a que se proíbe, nos omissivos determina-se o que o sujeito deve realizar em determinada situação. A proibição, portanto, abrange todas as demais ações distintas daquela determinada no tipo. A punição recai sobre o agente em virtude da prática de conduta que se afasta do devido, segundo a teoria do aliud agere.

O dolo, nos crimes omissivos, possui algumas peculiaridades importantes. O sujeito ativo não age diretamente na produção do resultado. O ordenamento impõe a ele a prática de uma conduta (recolher as contribuições à Previdência) a fim de evitar um resultado que, sem a ação do destinatário da norma, necessariamente irá ocorrer. A atuação do sujeito, nesses casos, é indispensável para interromper o curso causal em desenvolvimento, e assim evitar o resultado. Se o agente se propõe a qualquer outra finalidade que não aquela determinada pelo ordenamento, pratica a conduta proibida (diversa da imposta pelo tipo).

O dolo, na omissão, segundo a lição de Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli in "Manual de Direito Penal Brasileiro" – Parte Geral, RT, 1997, p. 547) "não se estrutura sobre uma causação, mas é finalidade típica no sentido de que dirige a causalidade tendo como base uma previsão da mesma. O que é fundamental para o dolo é a previsão da causalidade, que na omissão existe da mesma maneira que na tipicidade ativa". Com essa previsão da causalidade, o agente deixa de praticar aquilo que a lei determina, alcançando o resultado delituoso através da ação voltada para outros fins.

Daí a razão pela qual não há necessidade de se demonstrar o animus rem sibi habendi para a caracterização do delito. O tipo subjetivo se esgota no dolo, não havendo necessidade de se provar o especial fim de agir. É o que a doutrina hodierna denomina de tipo congruente (Maurach-Zipf, Jakobs, S. Mir Puig, entre outros) ou de tipo congruente simétrico (E. R. Zaffaroni).


Nesse sentido já decidiu o Pretório Excelso:

"RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. NÃO-RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO. ABOLITIO CRIMINIS. INOCORRÊNCIA. DIFICULDADE FINANCEIRA. MATÉRIA PROBATÓRIA. 1. O artigo 3º da Lei n. 9.983⁄2000 apenas transmudou a base legal da imputação do crime da alínea "d" do artigo 95 da Lei n. 8.212⁄1991 para o artigo 168-A do Código Penal, sem alterar o elemento subjetivo do tipo, que é o dolo genérico. Daí a improcedência da alegação de abolitio criminis ao argumento de que a lei mencionada teria alterado o elemento subjetivo, passando a exigir o animus rem sibi habendi. 2. A pretensão visando ao reconhecimento de inexigibilidade de conduta diversa, traduzida na impossibilidade de proceder-se ao recolhimento das contribuições previdenciárias, devido a dificuldades financeiras, não pode ser examinada em habeas corpus, por demandar reexame das provas coligidas na ação penal. Recurso ordinário em habeas corpus a que se nega provimento."
(RHC 86072⁄PR, 1ª Turma, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 28⁄10⁄2005)

"PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. QUESTÃO NOVA. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. DOLO ESPECÍFICO. ANIMUS REM SIBI HABENDI. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. ART. 5º, XL, DA CF⁄88. I. - Por conter questões novas, não apreciadas pelo Superior Tribunal de Justiça, o habeas corpus não pode ser conhecido, sob pena de supressão de instância. II. - O exame da alegação de inexistência de dolo específico implicaria o revolvimento do conjunto fático-probatório, o que não se admite nos estreitos limites do habeas corpus. III. - Para a configuração do delito de apropriação indébita previdenciária, não é necessário um fim específico, ou seja, o animus rem sibi habendi, exigido para o crime de apropriação indébita simples. IV. - Tendo sido aplicada aos pacientes pena próxima à mínima cominada ao delito, não há que se falar em aplicação retroativa da lei nova que, transmudando a base legal de imputação para o Código Penal, apenas alterou a pena máxima do tipo. V. - H.C. conhecido, em parte, e, nessa parte, indeferido."
(HC 84589⁄PR, 2ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 10⁄12⁄2004)


E, esta Corte já decidiu na mesma linha, v. g.:

"PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. PRESCINDIBILIDADE DO ESPECIAL FIM DE AGIR OU DOLO ESPECÍFICO (ANIMUS REM SIBI HABENDI). CRIME OMISSIVO PRÓPRIO. NÃO CONSTITUEM CAUSA EXCLUDENTE DA CULPABILIDADE MEROS PROBLEMAS ECONÔMICOS OU FINANCEIROS. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME PROBATÓRIO. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
1. O dolo do crime de apropriação indébita previdenciária é a consciência e a vontade de não repassar à Previdência, dentro do prazo e na forma da lei, as contribuições recolhidas, não se exigindo a demonstração de especial fim de agir ou o dolo específico de fraudar a Previdência Social como elemento essencial do tipo penal.
2. Ao contrário do que ocorre na apropriação indébita comum, não se exige o elemento volitivo consistente no animus rem sibi habendi para a configuração do tipo inscrito no art. 168-A do Código Penal.
3. Trata-se de crime omissivo próprio, em que o tipo objetivo é realizado pela simples conduta de deixar de recolher as contribuições previdenciárias aos cofres públicos no prazo legal, após a retenção do desconto.
4. Não se exime de responsabilidade o omitente que não faz o recolhimento devido a meros problemas econômicos ou financeiros.
5. A inexigibilidade de conduta diversa constitui causa supralegal de exclusão da culpabilidade e, para que reste configurada, é necessário que o julgador vislumbre a sua plausibilidade, de acordo com os fatos concretos revelados nos autos, cujo reexame seria inviável em sede de recurso especial.
6. Recurso improvido."
(REsp 447405⁄RS, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 10⁄10⁄2005)

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. DENÚNCIA. INÉPCIA. TIPO SUBJETIVO. ESPECIAL. FIM DE AGIR. DIFICULDADES FINANCEIRAS. REFIS. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. INOCORRÊNCIA.
I - Se a imputação é clara e específica, permitindo a adequação típica e, simultaneamente, a ampla defesa, não há que se reconhecer a pretendida inépcia da exordial acusatória. (Precedentes).
II - O tipo subjetivo no injusto do art. 95, alínea d da Lei nº 8.212⁄91 que teve continuidade de incidência no art. 168-A, § 1º, inciso I do CP (Lei nº 9983⁄00), se esgota no dolo, sendo despiciendo qualquer outro elemento subjetivo diverso, mormente a intenção de fraudar porquanto de estelionato não se trata (Precedentes do STJ e do Pretório Excelso).
III - A via do writ não permite o exame aprofundado do material cognitivo. (Precedentes).
IV - Se o débito decorrente do não recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas dos empregados não foi objeto de parcelamento, haja vista que a pessoa jurídica foi, apenas, incluída no REFIS e dele, posteriormente, excluída, não se há de cogitar na suspensão da pretensão punitiva ou ainda, com maior razão na extinção da punibilidade, como pretende o recorrente.
Recurso desprovido."
(RHC 17672⁄SP, 5ª Turma, de minha relatoria, DJ de 05⁄09⁄2005)

"PENAL. RESP. OMISSÃO NO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. NOTIFICAÇÃO PRÉVIA DOS RÉUS. CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. DOLO GENÉRICO. ANIMUS REM SIBI HABENDI. COMPROVAÇÃO DESNECESSÁRIA. RECURSO PROVIDO.
I. Em se tratando de crime de apropriação indébita de contribuições previdenciárias, tem-se como desnecessária a prévia notificação dos acusados, por não se configurar como condição de procedibilidade da ação penal, não havendo previsão legal expressa para tal.
II - A conduta descrita no tipo penal do art. 95, "d", da Lei 8.212⁄95 é centrada no verbo "deixar de recolher", sendo desnecessária, para a configuração do delito, a comprovação do fim específico de apropriar-se dos valores destinados à Previdência Social. Precedentes.
III – Recurso provido, nos termos do voto do Relator."
(REsp 622763⁄RJ, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 18⁄10⁄2004).


Portanto, o tema questionado é omissivo puro, sendo despiciendo qualquer elemento diverso do dolo (v.g. especial fim de agir) para configurá-lo (cf. Luiz Régis Prado in "Curso de Direito Penal Brasileiro", 2ª ed., RT, vls. 2, p. 495, in verbis: "O tipo subjetivo é representado pelo dolo consubstanciado pela consciência e vontade de não proceder ao recolhimento da contribuição social arrecadada. Não se exige o elemento subjetivo especial do tipo."). Enfim, na concepção causalista, ainda adotada por alguns, não há que se falar de dolo específico.


https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=2472058&sReg=200600457671&sData=20061016&sTipo=91&formato=HTML

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