terça-feira, 6 de janeiro de 2009

O mínimo embasamento probatório X Justa causa a autorizar a instauração da persecutio criminis

Confiram-se, oportunamente, os seguintes excertos doutrinários, verbis:

Fernando da Costa Torinho Filho (in Código de Processo Penal Comentado, vol. 1, 5ª edição, Saraiva, 1999, p. 121) ressalta que "... a doutrina ensina que, se por acaso a denúncia ou queixa não vier respaldada em elementos mais ou menos sensatos, sem um mínimo de prova mais ou menos séria, não poderá ser recebida, ante a falta do interesse processual. Não fosse assim, não teriam sentido os arts. 12, 16, 18, 27, 39, § 5º, e 47 do CPP. Sem esses elementos de convicção, não é possível a propositura da ação."

Afrânio da Silva Jardim (in Direito Processual Penal, 7ª edição, Forense, 1999, p. 323) assevera que:

"a realidade nos mostra que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitais do acusado, motivo pelo que, antes mesmo do legislador ordinário, deve a Constituição Federal inadmitir expressamente qualquer ação penal que não venha lastreada em um suporte probatório mínimo.

Destarte, torna-se necessária ao regular exercício da ação penal a sólida demonstração, prima facie, de que a acusação não é temerária ou leviana, por isso que baseada em um mínimo de prova. Este suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios da autoria, existência material do fato típico e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade. Veja-se neste sentido o que deixamos escrito em nosso trabalho intitulado "Arquivamento e desarquivamento do inquérito policial", publicado pela Revista de Processo, vol. 35, pp. 264-276, da Ed. Rev. dos Tribunais.

Ressalte-se, entretanto, que a Constituição deve condicionar a ação penal à existência de alguma prova, ainda que leve. Agora, se esta prova é boa ou ruim, isto já é questão pertinente ao exame do mérito da pretensão do autor. Até porque as investigações policiais não se destinam a convencer o Juiz, mas apenas viabilizar a ação penal, documentando-a com o inquérito ou peças de informação.

Ademais, contraria também o interesse público a formulação de uma acusação prematura, que se apresente, desde logo, como sendo inviável, vez que redundaria em indevida absolvição, sempre garantida pela imutabilidade da coisa julgada material".

José Frederico Marques (in Elementos de Direito Processual Penal, vol. 1, 2ª edição, Millennium, 2000, p. 355⁄356), tecendo considerações acerca do interesse de agir na ação penal, destaca:

"O pedido pode firmar-se em fato típico e, portanto, em providência do texto legal que o torne possível, mas não ser adequado à situação concreta que é deduzida na acusação. Nesse caso, faltará legítimo interesse para a propositura da ação penal.

Para que haja interesse de agir, é necessário que o autor formule uma pretensão adequada, ou seja, um pedido idôneo a provocar a atuação jurisdicional.

A jurisdição, como lembra MOREL, não é função que possa ser movimentada sem um motivo que justifique o pedido de tutela judiciária; e como este se faz através da ação, a regra é a de que onde não há interesse não existe ação: pas d´intérêt, pas d´action. O interesse de agir é a relação entre a situação antijurídica denunciada e a tutela jurisdicional requerida. Disso resulta que somente há interesse quando se pede uma providência jurisdicional adequada à situação concreta a ser decidida. É preciso que se examine em que termos é formulada a exigência que se contém na pretensão para que se verifique da existência do interesse de agir.

Donde a seguinte lição de LIEBMAN: "A existência do interesse de agir é assim uma condição do exame do mérito, o qual seria evidentemente inútil se a providência pretendida fosse por si mesma inadequada a proteger o interesse lesado ou ameaçado, ou então quando se demonstra que a lesão ou ameaça que é denunciada na realidade não existe ou não se verificou ainda. É claro que reconhecer a subsistência do interesse de agir não significa, ainda, que o autor tenha razão quanto ao mérito; isso tão-só quer dizer que pode tê-la e que sua pretensão se apresenta como digna de ser julgada".

O legítimo interesse é a causa do pedido, como o explica e demonstra TULLIO DELOGU. Ausente o interesse de agir, falta justa causa para a propositura da ação penal.

Deve, pois, o juiz rejeitar a denúncia com base no que diz o art. 43, n° III, do Código de Processo Penal, que determina tal rejeição quando faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal. Ora, a acusação não deixa de ser ameaça de coação; e como esta se considera ilegal quando sem justa causa (Código Processo Penal, art. 648, n° I), evidente é que o legítimo interesse, como justa causa da ação penal, constitui uma condição legal para a propositura desta."

Marcellus Polastri Lima (in Curso de Processo Penal, vol. 1, 2ª edição, Lumen Juris, 2003, p. 205⁄208) assim trata do tema:

"A justa causa, tem sido identificada pela doutrina como o próprio interesse de agir, e mesmo com as demais condições para o exercício do direito de ação, consoante já se via do entendimento de José Barcelos de Souza, verbis:

A expressão é útil e cabível, podendo ser usada perfeitamente para exprimir a ausência não apenas daquela condição (falta de interesse de agir), mas de qualquer das condições para o exercício da ação penal. (destaque nosso)

Tal interpretação se dá em virtude de que o art. 648, I, do CPP, que trata do habeas-corpus, prevê que existirá coação ilegal quando não houver justa causa.

De acordo com Frederico Marques:

Sem que o fumus boni juris ampare a imputação, dando-lhe contornos de imputação razoável, pela existência de justa causa, ou pretensão viável, a denúncia ou a queixa não pode ser admitida ou recebida.
O antigo anteprojeto de Código de Processo Penal (Projeto de Lei n° 1.655 de 1983), sob a influência do citado professor, adotava e identificava a justa causa como fundamento razoável e o legítimo interesse, consoante se vê da exposição de motivos, assim ficando redigido o parágrafo único do art. 7°:

A acusação deve ser rejeitada de plano, por ausência de justa causa, se não tiver fundamento razoável nem revelar legítimo interesse.
Verdade que a justa causa em sentido amplo, na forma do previsto no art. 648 do CPP, serve para designar a existência das condições da ação, de forma a identificar a imputação razoável, por outro lado, porém em sentido estrito, parte da doutrina a erige em verdadeira condição autônoma para exercício da ação penal.

E foi o professor Afranio Silva Jardim quem primeiro erigiu a justa causa como condição autônoma para o exercício da ação penal, idenficando-a com a exigência do lastro mínimo de prova que fornece arrimo à acusação, tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do imputado.

Porém tal é refutado por José Barcelos de Souza:

Também não é justa causa uma condição autônoma, uma quarta condição da ação.

Com efeito, denúncia ou queixa que não descrever fato criminoso em tese se mostra inépta, não podendo a aptidão de uma inicial ser erigida em condições da ação.

Do mesmo modo, a questão da justiça do processo em face da prova, matéria que diz respeito ao processo, não pode ser tratada como condição da ação.

Se parece correto afirmar que, ontologicamente, não seria a justa causa uma quarta condição da ação, no processo penal é incabível o exercício da ação penal sem um lastro probatório mínimo, apesar de não haver tal exigência em lei.

E é o próprio José Barcelos de Souza que reconhece:

...é aí que a justa causa se apresenta no seu sentido próprio de requisito particular de admissibilidade - demanda com causa de pedir não destoante da prova - uma peculiaridade do processo penal sem correspondência no processo civil. A decisão de rejeição, fundada na prova, não é sentença de improcedência. A decisão é simplesmente de admissibilidade.

Portanto, mesmo se não considerada a justa causa como quarta condição da ação, no processo penal, para recebimento da inicial é, como as condições da ação, exigida como condição de admissibilidade.

Obviamente que não se fará aqui exame de mérito, na forma do art. 386 do CPP, pois não se trata de se aferir procedência da imputação com juízo de mérito, e sim de se averiguar se há suporte probatório mínimo para a imputação, ou seja se o fato narrado está embasado no mínimo de prova, se encontra correspondência em inquérito ou peça de informação.

Destarte, o juiz não poderá fazer confronto de provas, ou averiguar se estas são boas ou não, mas apenas verificar se a imputação foi lastreada em elementos colhidos, mesmo que isolados ou contraditados, sem juízo de mérito, pois, como é evidente, não pode haver imputação gratuita, sem arrimo algum, ou mesmo que narre fato completamente diverso daquele apurado.

Trata-se, na verdade do mesmo fundamento razoável a que se referia Frederico Marques, que assim já definia a justa causa, aqui identificada com fundamento em elementos razoáveis ou mínimos".

Gilherme de Souza Nucci (in Código de Processo Penal Comentado, Revista dos Tribunais, 4ª ed., 2003, p. 648), sobre a ausência de justa causa, assevera que "desdobra-se a questão em dois aspectos: a) justa causa para a ordem proferida, que resultou em coação contra alguém; b) justa causa para a existência de processo ou investigação contra alguém, sem que haja lastro probatório suficiente.

Na primeira situação, a falta de justa causa baseia-se na inexistência de provas ou de requisitos legais par que alguém seja detido ou submetido a constrangimento (ex.: decreta-se a preventiva sem que os motivos do art. 312 do CPP estejam nitidamente demonstrados nos autos).

Na segunda hipótese, a ausência de justa causa concentra-se na carência de provas a sustentar a existência e manutenção da investigação policial ou do processo criminal. Se a falta de justa causa envolver apenas uma decisão, contra esta será concedida a ordem de habeas corpus. Caso diga respeito à ação ou investigação em si, concede-se a ordem para o trancamento do processo ou procedimento."

Júlio Fabbrini Mirabete (in Processo Penal, 14ª edição, Atlas, 2003, p. 138⁄139) destaca:

"Ultimamente tem se incluído como causa de rejeição da denúncia ou da queixa por falta de condição exigida pela lei (falta de interesse de agir) a inexistência de elementos indiciários que amparem a acusação. É realmente necessário que a inicial venha acompanhada de um mínimo de prova que demonstre ser ela viável; é preciso que haja fumus boni iuris para que a ação penal tenha condições de viabilidade pois, do contrário, não há justa causa.

Tem-se exigido, assim, que a inicial venha acompanhada de inquérito policial ou prova documental que a supra, ou seja, de um mínimo de prova sobre a materialidade e a autoria, para que opere o recebimento da denúncia ou da queixa, não bastando, por exemplo, o simples oferecimento da versão do queixoso. Evidentemente não se exige prova plena nem um exame aprofundado e valorativo dos elementos contidos no inquérito policial ou peças de informação, sendo suficientes elementos que tornam verossímil a acusação."

Como ilustração, colaciono os seguintes precedentes:

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. PROCURADOR REGIONAL DO TRABALHO À ÉPOCA DOS FATOS E, ATUALMENTE, JUIZ DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 9ª REGIÃO⁄PR. PROLEGÔMENOS. LASTRO PROBATÓRIO MÍNIMO. PLAUSIBILIDADE DA DENÚNCIA. ABUSO NA ACUSAÇÃO. FLAGRANTE ILEGALIDADE. REFLEXOS JURÍDICOS IMEDIATOS. DESCLASSIFICAÇÃO. ATUAÇÃO. PARQUET. DESIGNAÇÃO. PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA. LEGALIDADE. INQUÉRITO. PROCESSAMENTO. COMPETÊNCIA. FORO ORIGINÁRIO DA AÇÃO PENAL. INDICIAMENTO REALIZADO POR AUTORIDADE POLICIAL. ILEGALIDADE. PRERROGATIVA DE FORO. ART. 129, DO CP. LESÃO CORPORAL LEVE. REPRESENTAÇÃO. EXCESSO DE FORMALISMO. DESNECESSIDADE. SUPRIMENTO DA CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE. VÍTIMA QUE COMPARECE PERANTE A AUTORIDADE POLICIAL PARA NOTICIAR A OCORRÊNCIA DOS FATOS. EXAME DE CORPO DE DELITO. NÃO-REALIZAÇÃO. FALTA DE DEMONSTRAÇÃO DE LESÃO. CARACTERIZAÇÃO. CONTRAVENÇÃO. VIAS DE FATO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. PRESCRIÇÃO. ART. 132, DO CP. PERIGO PARA A VIDA OU SAÚDE DE OUTREM. NÃO DEMONSTRAÇÃO DE PERIGO CONCRETO À INTEGRIDADE FÍSICA OU SAÚDE. CONDUTA SITUADA NO PLANO ABSTRATO. ART. 163, DO CP. DANO SIMPLES. AUSÊNCIA DE VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA À PESSOA COMO MEIO PARA A EXECUÇÃO DO DELITO. ILEGITIMIDADE ATIVA. CRIME DE AÇÃO PENAL PRIVADA. ART. 121, C⁄C ART. 14, II, DO CP. HOMICÍDIO DOLOSO. FORMA TENTADA. AUSÊNCIA DE ANIMUS NECANDI. EXCESSO DE ACUSAÇÃO. DESCLASSIFICAÇÃO. DISPARO DE ARMA DE FOGO. ART. 10, DA LEI Nº 9.437⁄97. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. PORTE FUNCIONAL. PRERROGATIVA INSTITUCIONAL. REGISTRO. OBRIGATORIEDADE. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. UM SÓ CONTEXTO FÁTICO. IMPOSSIBILIDADE DE CONFIGURAÇÃO DE DELITOS AUTÔNOMOS. TRANSAÇÃO PENAL. INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. NOVO CONCEITO. LEI Nº 10.259⁄2001.
I – A peça acusatória deve vir acompanhada com o mínimo embasamento probatório apto a demonstrar, ainda que de modo indiciário, a efetiva realização do ilícito penal por parte do denunciado. Se não houver um lastro probatório mínimo a respaldar a denúncia, de modo a tornar esta plausível, não haverá justa causa a autorizar a instauração da persecutio criminis.
(...)
(APN 290⁄PR, Corte Especial, de minha relatoria, DJU de 26⁄09⁄2005).

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ART. 138 E 140 DO CÓDIGO PENAL. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. JUSTA CAUSA.
I - Se entre o recebimento da denúncia e a presente data, se passaram mais de dois anos, sem que tenha havido a prolação de sentença condenatória, há que se reconhecer a prescrição da pretensão punitiva estatal quanto ao delito do art. 140 do CP, com fundamento no art. 109, VI, do mesmo diploma. O mesmo, entretanto, não se pode afirmar quanto ao delito do art. 138 do CP.
II- A queixa-crime, embora descreva conduta típica, não se encontra acompanhada do mínimo embasamento probatório apto a demonstrar, ainda que de modo indiciário, a efetiva realização do ilícito penal por parte da querelada. Diante disso, sem que haja o mínimo lastro probatório a acompanhar a exordial acusatória, não há justa causa autorizativa da instauração da persecução penal. (Precedentes).
Recurso parcialmente provido para declarar a prescrição da pretensão punitiva em relação ao delito do art. 140 do CP, e trancar, quanto ao mais, a ação penal por falta de justa causa".
(RHC 15.967⁄SP, 5ª Turma, de minha relatoria, DJU de 08⁄11⁄2004).

https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=2709891&sReg=200600498048&sData=20061120&sTipo=91&formato=HTML

Nenhum comentário: